(Liturgia do Décimo Quarto Domingo do Tempo Comum)
O tema apresentado nas leituras
deste décimo quarto domingo do Tempo Comum é particularmente sugestivo.
Aparentemente, parece uma
contradição que Deus, o Poderoso, seja capaz de manifestar-se no ser humano,
também através da sua fraqueza.
Na primeira leitura podemos ouvir
como o profeta Ezequiel (2,2-5) é enviado aos israelitas para proclamar a
Palavra de Deus. Deus, porém, desde o início, lhe avisa que a Sua Palavra não
será acolhida por esse povo rebelde. Os israelitas reservaram ao profeta o
mesmo tratamento que deram ao Senhor, ou seja, o não acolhimento da Palavra.
Na base dessa situação de não
acolhimento da Palavra está uma atitude de rebelião e de endurecimento do
coração. O povo é composto, de fato, de filhos teimosos e de coração
endurecido! Contra a teimosia do povo e o endurecimento do coração, Deus não
pode fazer nada!
Mas que sentido tem o exercício
do ministério profético, quando já se sabe que a Palavra não será acolhida? Faz
sentido anunciar a vontade de Deus quando já se sabe, antecipadamente, que não
será aceita? O ministério profético não será um exercício inútil, uma perda de
tempo?
O livro do profeta Ezequiel nos diz que não! Ainda na recusa da
verdade, que é consequência lógica do bem mais precioso que Deus deu ao homem,
isto é, a liberdade, se manifesta um importante elemento da missão profética.
Trata-se de dar e ser testemunho de
Deus! Isto é, o profeta não anuncia a Palavra de Deus para “vencer” ou para
ter razão. Ele é
chamado a desenvolver a sua missão numa profunda liberdade interior, sem
procurar o consenso ou a aprovação, tampouco almejar como critério da sua
missão, a popularidade e a acolhida. A sua missão é levar uma mensagem que não
é sua, mas de Deus. É necessário considerar que Deus é quem realiza!
Deus respeita a liberdade do homem, pois sabe que o homem pode
recusar acolher a sua mensagem. Contudo, o avisa através dos profetas, que um
dia, depois de ter experimentado as consequências da dureza do seu coração e da
rebelião às Suas coisas a humanidade, repensando sobre as suas palavras, poderá
se arrepender.
Aqui há um aspecto importante da profecia. As pessoas saberão que
no meio deles está um profeta, não tanto porque o profeta é alguém poderoso,
respeitado e bem aceito, mas pelo contrário, porque ele é derrotado, ou como se
diz por aí, um perdedor. O que importa, aos olhos de Deus, é a realização de
sua vocação e o testemunho que ele dá.
Deus é capaz de conferir ao
profeta a Sua identidade e ao mesmo tempo fazer com que esta seja reconhecida
pelo povo, inclusive através da experiência da fragilidade e das falhas
humanas. Esta palavra nos recorda como é importante, para os cristãos, ser
testemunhas da Palavra de Deus, mesmo naqueles contextos em que dificilmente o
testemunho será acolhido. O êxito do testemunho não depende de nós! Somos
“servos inúteis”. Quando fizermos aquilo que nos foi mandado fazer, deixemos
que Deus dê a força que nós não temos e que realize o Seu projeto.
Uma temática semelhante é
apresentada na segunda leitura. Paulo reclama de um “espinho na carne” que o
atormenta e do qual gostaria de ser libertado. Embora não saibamos exatamente
do que se trata, podemos supor que, certamente, era algo que o perturbava,
atrapalhava e que tornava difícil a sua missão profética. Ele diz que orou a
Deus por três vezes para que Ele o libertasse daquele “espinho”. Mas a resposta
que obteve é algo verdadeiramente surpreendente: “Basta-te a minha graça, pois é na
fraqueza que a força se manifesta”. Na bíblia encontramos diversas vezes
expressões que nos recordam essa realidade, quando Deus fala como falou a Paulo:
“não quero que penses que venceste graças
à tua coragem ou bravura, ou que é
por ela que alcançaste o sucesso”etc.
Para evitar que Israel se
ensoberbeça e atribua a si mesmo o mérito de certas vitórias, até mesmo Deus
pede algo estranho, como por exemplo, quando pede para diminuir o número de
soldados na batalha ou quando pede para realizar algumas ações
incompreensíveis, isto é, humanamente sem lógica. Objetivo de tudo disso é que
fique bem claro que a obra é de Deus e não do homem.
Paulo também faz essa experiência
“para que a extraordinária grandeza das
revelações não me ensoberbecesse... para que eu não me exalte demais”!
A
fim de que Paulo não possa pensar que as conversões suscitadas pela sua
pregação são fruto da sua eloquência ou da sua capacidade comunicativa, Deus
lhe põe um “espinho” na carne, e assim, deste modo, se realiza aquilo que Deus
quer. Trata-se de deixar claro que a obra é de Deus e não humana, ele passa a
ser reconhecido como profeta do Senhor e,
através da experiência da limitação humana, torna-se instrumento do poder de
Deus.
Tanto Paulo como Ezequiel são
apenas instrumentos e, como tal, também fazem a experiência da inadequação e da
derrota. Paradoxalmente, graças a esta inadequação, isto é, à falta de
correspondência com tão alta missão, serão reconhecidos como instrumentos de
uma mensagem que não é deles, mas de Deus.
Para nós cristãos também vale
esta regra. O testemunho que devemos levar ao mundo não é o testemunho de nós
mesmos. Somos apenas portadores da Palavra de Outro. Devemos fazê-lo com
coerência e caridade, fazendo o melhor que pudermos, para que essa Palavra seja
acolhida, mas devemos sempre deixar o êxito para Deus, para que a sua vontade
seja feita.
Agindo assim poderemos, talvez,
também nós chegar a reconhecer: “... quando
eu me sinto fraco, é então que sou forte”, o que equivale a dizer, quando
sou apenas um instrumento, Deus pode agir em mim.
Finalmente, o Evangelho recupera
ainda o argumento das duas leituras. O próprio Jesus, o Filho de Deus, faz a experiência
que Ezequiel e Paulo fizeram. No Seu caso o limite não se constitui de uma rebelião
aberta do povo ou de um problema ou limitação humana da Sua pessoa, como no
caso dos dois. Trata-se do fato de encontrar-Se na Sua pátria, entre o Seu
povo, entre as pessoas que O conhecem e comentam: “Este homem não é o carpinteiro, filho
de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram
aqui conosco”?
“E
ficaram escandalizados por causa dele”! É muito forte este registro no
evangelho de hoje. A palavra "escândalo" vem do grego e significa
"tropeço”, obstáculo para derrubar alguém. O obstáculo, humanamente
falando, para Ezequiel, foi colocado pela rebeldia do povo, pessoas coração
endurecido. Já para
Paulo, o obstáculo era a própria limitação humana.
O obstáculo para Jesus é encontrar-Se em meio às pessoas que mais
deveriam acolhê-Lo. Pessoas que não conseguem imaginar que Ele mesmo, o
carpinteiro conterrâneo, pudesse ser o Filho de Deus.
Essa atitude do povo gera a
incredulidade, a indisponibilidade e incapacidade para acolher o dom presente
na pessoa de Jesus. Contra essa incredulidade nem mesmo Ele pode intervir. “E ali não pôde fazer milagre algum”! A
falta de fé do homem tem o poder extraordinário de “anular” o poder Deus,
obstáculo para que Deus possa agir!
Assim como Ezequiel tinha
desanimado diante da rebelião, sendo necessário o Espírito pô-lo de novo de pé,
assim como Paulo rendeu-se ao limite da sua humanidade imperfeita, Jesus parou
diante da descrença. A liberdade, que se manifesta em oposição rebelde, limite
humano ou falta de fé, é uma característica do ser humano.
Às vezes não é usada para o bem
e, por isso mesmo, não pode ser chamada de liberdade. Contudo, será sempre a
capacidade das pessoas realizarem as suas próprias escolhas, mesmo em oposição
ao plano de Deus. Na atitude de Jesus, rejeitado pelo seu povo, podemos ver o
que ocorre com tantos cristãos, que experimentam a dificuldade de testemunhar a
sua identidade, até mesmo dentro de suas próprias famílias, comunidades
religiosas ou nos ambientes onde são bem conhecidos. Jesus também conheceu esse
limite.
Concluindo, a liturgia de hoje
nos convida a realizar um profundo ato de humildade. “Somos servos inúteis, fizemos somente aquilo devíamos fazer”. Portanto,
quando nos esforçamos sinceramente para viver de acordo com o Evangelho,
deixemos o êxito nas mãos de Deus.
Uma lição para nós, nesses tempos
da busca pelos holofotes, tempo de celebridades e de busca pela fama, inclusive
entre nós. A imprensa, de vez em quando divulga as consequências desse
equívoco, porque nós deveríamos ser apenas profetas, conscientes da realidade
que a Palavra hoje nos apresenta! (Frei
Alfredo Francisco de Souza, SIA – Superior dos Missionários Inacianos – formador@inacianos.org.br
– Website: www.inacianos.org.br).
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