(Liturgia do Quarto
Domingo da Páscoa)
A liturgia deste domingo fala, especialmente, de duas figuras. Trata-se
da ovelha e da porta. São dois termos ambivalentes, sobre os quais são necessários
alguns esclarecimentos.
No que diz respeito às ovelhas, não gozam de muito boa fama, na
concepção comum das pessoas. Dizer hoje que alguém é uma “ovelha”, significa
qualificá-lo como um indivíduo sem personalidade, que segue opiniões e moda sem
refletir. O seu “slogan” preferido é: “Todo mundo faz assim..., portanto...”. Pode-se
dizer ainda que se trata de uma pessoa medrosa, que foge das responsabilidades pessoais. O seu modelo
ideal seria Pôncio Pilatos, um especialista em “lavar as mãos”.
Na linguagem do Evangelho, porém, a figura da ovelha é reabilitada. As
suas características específicas são as de saber
reconhecer a voz do pastor e, naturalmente, de seguí-lo nos pastos que ele
decide serem melhor para elas, e não nos pastos que elas, talvez, gostariam de
pastar.
Além disso, é considerada pelo pastor, não como uma massa anônima do
rebanho, mas com individualidade única, tanto que ele a chama pelo nome e esta
segue a sua voz, ainda que não o veja. A ovelha não se deixa enganar
facilmente.
Certa vez,
fiquei muito admirado quando, num lugarejo de uma cidadezinha do interior, em
meio às pessoas muito simples, conheci um homem que cuidava de um pequeno
rebanho de gado. Ali havia alguns bois, vacas e bezerros.
Fiquei admirado
com o fato de que o homem conhecia cada animal do rebanho que cuidava.
Inclusive, chamava cada um deles pelo nome e com carinho. Para mim, todos os
animais do rebanho eram, absolutamente, iguais. Para ele, ao contrário, eram
todos diferentes uns dos outros. Isso ficava claro quando “falava” com eles,
com afeto.
Neste domingo do
Bom Pastor, lembrei-me que este é também o relacionamento que Jesus, o Bom
Pastor, tem com o Seu rebanho. Ele chama cada uma das ovelhas pelo nome, ou
seja, trata Sua Igreja não apenas como um rebanho único e indistinto, mas como
uma família constituída de pessoas, cada uma com suas particularidades, sua
individualidade, pelo nome.
O nome, de fato,
revela não apenas um aspecto formal, exterior, mas a própria identidade da
pessoa, o seu mistério mais profundo. É o nome que distingue uma pessoa de
todas as outras. Talvez seja por isso que o rito do Batismo comece com a
pergunta sobre qual nome os pais escolheram para a criança.
Jesus nos
conhece assim, profundamente, chamando-nos pelo nome, e nós podemos distinguir
a Sua voz de todas as outras vozes.
Acredito que
qualquer um de nós já pôde fazer a experiência de, mesmo no meio de muita gente,
captar uma palavra, um som da voz de uma pessoa querida e conhecida e,
imediatamente, mesmo sem vê-la, reconhecer a sua presença.
Assim também
acontece em nosso relacionamento com Jesus. Não só ele nos conhece
profundamente chamando-nos pelo nome, mas também nós reconhecemos a Sua voz.
Mesmo que nunca O tenhamos visto em “carne e osso”, podemos reconhecer a Sua
voz, pois Ele fala na profundidade do nosso coração.
Esta intimidade
e conhecimento recíprocos ultrapassam a simples imagem do pastor e das ovelhas.
Jesus não só nos guia como Pastor, mas nos deu também o Seu próprio corpo para
que, através dele, possamos entrar na vida. Jesus é a porta das ovelhas, porque
no Seu corpo, que traz as marcas do sofrimento e do mal que a humanidade é
capaz de causar, somos curados e podemos entrar no “pasto” da vida.
Aliás, a porta é segunda figura. Trata-se de um termo que na linguagem
do Evangelho também está sujeito a um duplo significado.
De fato, Jesus falou tanto da porta larga, como da porta estreita. A porta larga é a porta pela qual a pessoa se
perde, isto é, a entrada na qual na vida das ovelhas, seja como rebanho, isto
é, Igreja, sociedade, ou seja como pessoas, entram na ilusão de encontrar
salvação.
É uma tarefa inútil, porque como disse o próprio Jesus: “Em verdade, vos digo, entrai pela porta
estreita, pois larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e
muitos são os que entram por ele” (Mt
7,13).
Muitas vezes, o caminho da porta larga, ou o caminho do mal, buscado
conscientemente, é mais cômodo e prazeroso. Contudo, no fim do caminho a que a
porta larga conduz, é possível verificar e experimentar que a facilidade da sua
largueza não conduz à verdadeira alegria e felicidade. Não apenas no caso da
recusa deliberada da porta estreita, mas principalmente no caso de uma atitude
de desprezo para com Ele.
A porta estreita, ao contrário, é a porta que leva à verdadeira
salvação, como o próprio Jesus, também, nos diz: “Como é estreita a porta e o caminho que conduz à vida... e poucos são
os que o encontram” (Mt 7,14).
Neste ponto não se pode calar a pergunta: como reconhecer e distinguir a
porta larga da porta estreita? Ora, se a porta larga leva à ruína e à
destruição, esta só pode ter tão somente o "maligno" como guardião,
que fará tudo para seduzir, encantar e atrair as ovelhas, para que atravessem
por ela.
Para as pessoas de fé, a porta estreita é o
próprio Cristo, que disse: “Eu
sou a porta das ovelhas. Todos
aqueles que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não
os escutaram. Eu sou a porta.
Quem entrar por mim será salvo;
entrará e sairá e encontrará pastagem”, proclama o Evangelho (Jo 10,1-10).
Encontrarão, portanto, “pasto abundante”, isto é, realização plena de si
mesmos, na medida em que entrarem pela “porta estreita”, que é Cristo.
Infelizmente, a sociedade de hoje parece que pode viver sem Ele. A toda
hora manifesta de diversas maneiras que Ele não é importante ou necessário.
Este fato não escapou nem mesmo ao filósofo Martin Heidegger, que afirma: “a noite real do mundo em que nos
encontramos, não é causada pela ausência de Deus, mas pelo fato de que os
homens não sofrem mais com essa ausência”.
A partir do
momento que se identifica que a porta estreita é Cristo, o próprio homem e a
mulher de fé sabem o que esta porta exige deles. A saber, conversão e vida cristã conforme as renúncias e as promessas do
Batismo. Vontade e perseverança na escuta da Sua voz, que
continua a ressoar na voz da Sua Igreja. Força
para seguir os seus passos, para viver não mais para o pecado, mas para a
santidade de vida, de acordo com o nosso estado de fé.
O Evangelho deste Quarto Domingo da Páscoa ecoa a
voz de Jesus: “Eu vim para que todos
tenham vida, e a tenham em abundância”. Mas onde, de fato buscamos a vida?
Onde a procuramos? No trabalho? Nos afetos? Nos hobbies? Nas diversões? Nos bens materiais?
É verdade que
todas estas coisas são boas, mas não podem dar a vida, não são fonte da vida. Se
buscarmos a vida nestas coisas, nos tornaremos presa fácil dos “ladrões e
assaltantes”, metáforas do mal no Evangelho de João.
O mal existe e
não apenas como possibilidade de errar, mas como uma força ativa que usa até
mesmo das coisas boas, para nos destruir, nos levar à morte, atraindo-nos com suas
“iscas”, para depois nos devorar.
E o que é a
morte da qual fala o Evangelho? A morte
é, basicamente, o que leva à rejeição de
Deus. É aquilo que se “faz ninho” em nós todas as vezes que pensamos que
podemos conseguir ter vida a partir de algumas coisas boas desta vida, e não n’Ele
mesmo!
É claro que o
poder, as posses e o prazer, quando bem usados, são dons de Deus. Mas quando os
procuramos em si mesmos, e estes não recebidos como dons de Deus, eles se
tornam “iscas” através das quais o mal quer consumir, destruir o ser e a vida,
porque só Cristo pode dar a vida e dá-la em abundância.
Abrir o coração
a Cristo, portanto, e permitir que Ele se torne a porta para que entremos no
mistério de Deus, não significa depreciar a vida e todas as coisas boas que ela
contém. Pelo contrário, significa fazer da vida um sacramento de encontro com
Deus, compreendendo que a vida de cada um de nós é, potencialmente, uma porta
aberta para entrar em comunhão com Ele.
Importa,
portanto, compreender que mesmo os sofrimentos, as lutas e cansaços, as
privações e as tristezas desta vida podem se transformar em uma porta aberta,
se confiarmos n’Ele, se permitirmos que as Suas chagas, abertas em nossas
próprias feridas, curem e purifiquem a nossa dor. Em troca Ele nos dará a
verdadeira alegria, vida plena e abundante. (Frei Alfredo Francisco de Souza, SIA – Missionário Inaciano – formador@inacianos.org.br – www.inacianos.org.br).
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