(Liturgia do Quarto Domingo da Quaresma)
“Dar à luz” é o
termo que usamos para dizer que uma mulher traz ao mundo uma criança, que uma
criança nasce. Um dia, porém, nasceu um menino cego.
Aquele menino, agora
adulto, nunca viu a luz. E como não viu a luz, não viu nada, porque é a luz que
permite ver as pessoas, as coisas, a natureza que nos cerca, com as suas cores
e formas. Somente assim podemos ter ideia da realidade e é assim que a fixamos
tudo o que vimos na mente, através da recordação.
Se fechássemos os
olhos para tentar fazer a experiência do cego de nascença do Evangelho de hoje,
não conseguiríamos. Nem mesmo se imaginássemos que não enxergamos mais, se
tentássemos nos acostumar a viver como alguém que só escuta, ainda assim, não poderíamos
compreender aquele cego!
Se assim
fizéssemos, mesmo quando ouvíssemos a palavra sol, luz ou árvore, nós imaginaríamos
as suas formas em nossa mente. Saberíamos do que se trata. Porque já as
teríamos visto um dia.
Isto, porém, não
acontece com o cego de nascença. Ele não pode imaginar nada, porque nunca viu
nada. Mesmo se alguém lhe explicasse o que significa a beleza do sol, redondo,
grande e brilhante, não compreenderia.
Para ele a cor “verde”
ou “amarelo” não teriam nenhum significado. Aliás, nem mesmo a palavra cor
teria sentido. É como se ele tivesse crescido na “noite”.
Enquanto todos
os outros meninos tem medo do escuro, para ele o escuro é algo normal. Aquilo que
para todas as outras pessoas é normal, para ele é algo difícil, não normal,
como andar, brincar etc.
Quando era
pequeno, como depois, adulto, é alguém que está sempre à margem do caminho, de
ser considerado pelos que o cercam e da faculdade de escolher. Hoje, para os
deficientes visuais, graças a Deus, não mais, mas naquela época, trabalhar seria
impossível, como também, normalmente, seria impossível ter uma vida normal,
namorar, casar etc.
Talvez não se
sentia nem mesmo útil, pois é alguém que sempre tinha necessidade da ajuda dos
outros para tudo, que se sente inferior, e por isso, está muito acostumado a agradecer.
Mas é também alguém
que desenvolveu muito a capacidade de escutar, como sabemos, e não apenas o
conteúdo dos discursos, mas inclusive o tom da voz, os humores e os corações de
quem fala.
Quantas vezes
não teria sido alvo das piadas de algum prepotente. Quantas vezes não teria
escutado a palavra “coitado”, vinda de alguém que passasse à beira do caminho
onde mendigava.
Desde que nasceu
a sua condição foi definida como “desgraça” e, desde cedo tinham-lhe ensinado a
sentir-se culpado, a considerar-se um desgraçado.
Imaginemos este
homem que encontra Jesus e O escuta cuspindo no chão, diante dele. Talvez, a primeira impressão tenha sido a de mais
um insulto. Mas já estava acostumado com isso.
Entre
os rumores da vida e os ruídos do mercado à sua volta, sentiu a lama ser
aplicada sobre os seus olhos. Naquele momento intuiu que a lama é feita com
saliva, ou talvez, com lágrima, porque se tem algo com o que está acostumado é
com a poeira do chão das estradas e as lágrimas, que lhe são familiares.
Contudo,
não protesta, tampouco se defende. Sabe que para sobreviver precisa suportar,
além das próprias dificuldades e limitações, também as zombarias. Mas logo
depois, escuta aquela voz. O som harmonioso, manso e forte ao mesmo
tempo, daquelas palavras é dirigido a ele: “Vai
lavar-te na piscina de Siloé”.
Quanto amor,
quanta estima naquelas palavras que saíram do coração daquele homem chamado
Jesus, cheio de calma e de simplicidade. Palavras vindas de uma alma
transbordante de paz e de humildade.
O cego é um “expert”
na arte de escutar. Nisso, ninguém pode enganá-lo! Um medo súbito misturado com
alegria o toma. Levanta-se, com as mãos sobre o rosto, sentindo a lama que lhe
foi aí colocada. Embora o seu maior sonho tenha sido enxergar o que existe fora
de si, dentro dele se acende uma esperança.
O homem, então,
anda ainda tateando, como sempre, tocando as paredes com as mãos, o chão com os
pés, antes de apoiar todo o corpo. Talvez quisesse correr ou andar mais
firmemente, mas não consegue. Cada passo dele é sentido como se fosse um
quilômetro. Cada segundo, como se fosse um ano.
Jesus não o
convida, mas o “envia” à piscina de Siloé. Ele se lava e se vê pela primeira
vez refletido na água, ainda um pouco suja e agitada como a sua vida.
Neste ponto
podemos imaginar o seu grito, seu desabafo, seu riso e suas lágrimas. Ele olha à
sua volta e, pela primeira vez, relaciona os ruídos e os sons que sempre escutou
com as imagens e rostos que nunca tinha visto ou imaginado antes. Está atordoado,
talvez, como se estivesse embriagado, mas agora, sente-se tão forte como quem
tem a capacidade de erguer o mundo com as próprias mãos. Procura aquele homem
chamado Jesus, mas não sabe qual deles é, nem para onde foi. À sua volta há
muita gente curiosa. E como quando acontece com quem está no meio de da
multidão, é “arrastado” para diante dos sacerdotes e dos mestres da lei.
Aqueles que “enxergam
e sabem de tudo muito bem”, que “removem a trave” dos olhos do povo cego, para
que enxerguem melhor. São aqueles que o povo admira, respeita e teme. Ele,
visto sempre à margem, agora está no centro da atenção deles. É interrogado
sobre o que lhe aconteceu, sobre aquele que ele ainda não conhece.
Com certeza a
alegria de enxergar ainda toma conta dele. Mas, talvez, eles podem “iluminá-lo”
sobre o que lhe aconteceu. O verdadeiro drama começa neste momento. Na verdade,
o que temos aí é um grande número de “cegos’ em torno da história do cego de
nascença. “Os Seus discípulos o
interrogaram: ‘Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?”
Jesus trata de esclarecer que cegos são todos aqueles que “vêem” a doença
como uma punição de Deus.
Os discípulos estão
tomados pela dúvida e, por conseguinte, fazem a pergunta. Mas se aquele homem
era cego de nascença não poderia ter feito nada de mal! Talvez, então, o
fizeram os seus pais? Caso contrário, como se explicaria a sua cegueira?
A verdade é que
todos nós somos
cegos quando após um acidente ou diante de um problema de saúde, ou qualquer
situação difícil que nos faz entrar em crise, dizemos, “que mal eu fiz para
merecer isso? Por que eu? Por que comigo? como se Deus estivesse nos castigando,
é Jesus quem responde: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve
para que as obras de Deus se manifestem”!
Jesus
nos revela, mais uma vez, que Deus não é sádico. Deus não brinca, não faz piada
de mau gosto com a vida dos seus filhos. Deus faz apenas as obras primas da
natureza.
Às
vezes, são obras como as de Picasso, que não conseguimos compreender, nem
apreciar muito bem, como uma grande obra de arte, mas são sempre obras primas
que tem um valor imenso.
Deus
não pode querer o sofrimento dos seus filhos! Nem mesmo daqueles filhos que tem
“culpa no cartório”, ou que são maus. Deus não é um justiceiro. Se Ele permite
o sofrimento, é em vista de um bem muito maior. Mesmo quando não se vê com
clareza esta verdade, não significa que não seja verdade ou que não acontece.
O que Jesus nos
disse hoje no Evangelho (Jo 9,1-41) deve
ficar claro, de uma vez por todas: cada situação de crise ou de doença imputável
à desordem ou a liberdade mal usada pelo ser humano, acontece para que seja
manifestada a glória de Deus em nós. Portanto, aquilo que nós chamamos ou vemos
como “desgraça” é mais uma misteriosa e grande oportunidade para experimentar a
Graça de Deus.
Na verdade,
precisamos atualizar a nossa maneira de ver as coisas e de tirar conclusões dos
fatos negativos desta vida, de acordo com o Evangelho de Hoje. “Porventura,
também nós somos cegos?” Perguntaram os fariseus, ao que Jesus responde: “Se fosses
cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: Nós vemos, o vosso pecado permanece”!
Dizemos que a fé
é cega, mas esta expressão contém um grande erro! A verdadeira fé, pelo
contrário, faz enxergar aquilo que os olhos do corpo e da simples inteligência humana
não vêem. A fé faz enxergar aquilo que Deus enxerga, como nos ensina a primeira
leitura de hoje (1Sm 16, 1b. 6-7. 10-13a),
“O homem vê as aparências, mas o Senhor
olha o coração”!
Somente à luz da
fé se pode conhecer o único e verdadeiro Deus, como também é só assim que se
pode compreender o Seu pensamento e as Suas ações. Somente à luz da fé se pode
reconhecer em Jesus Cristo, o Deus vivente, e somente assim se pode ver, isto
é, experimentar concretamente o Seu amor.
O salmo 22 na
liturgia de hoje nos levou a rezar assim: “O Senhor é o meu Pastor, não me
falta coisa alguma... pelos prados e campinas verdejantes Ele me faz repousar...
Ele me guia no caminho mais seguro ...mesmo que eu passe pelo vale tenebroso,
nenhum mal eu temerei, porque estais comigo com bastão e com cajado...eles me
dão segurança”!
Já a segunda
leitura (Ef 5,8-14) nos exorta: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor.
Comportai-vos como filhos da Luz”. E o fruto da Luz chama-se bondade, justiça,
verdade. Buscai o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas,
que não levam a nada; antes, desmascarai-as”!
Estamos no meio
da Quaresma. Tempo de conversão à Luz que vem de Deus. Diante das catástrofes
como a do avião desaparecido, das vítimas das guerras em várias partes do mundo,
dos conflitos na Ucrânia, das enchentes e da seca no Brasil, das doenças e
tragédias da vida, hoje Jesus nos ajuda a pensar e a “ler” fatos dolorosos assim,
à luz do Seu ensinamento, como também já deixou claro em outras passagens como
esta: “E quanto àqueles dezoito, sobre os
quais desabou a torre de Siloé, que foram mortos quando a torre caiu sobre eles...
crêem que eles eram piores do que todos os outros habitantes de Jerusalém?” (Lc 13, 4).
Infelizmente, às
vezes, parece que ainda não entendemos que a humanidade é uma grande família e
que tudo o que acontece em todas as partes do mundo nos afeta e nos atinge, de
certa forma. Infelizmente também, diante
das catástrofes, ainda ouvimos falar que “o cego é cego porque é culpado”, ao
invés de fazer do Evangelho de Jesus Cristo a luz para o caminho da nossa vida.
Estaremos mortos,
mesmo antes de morrermos, se não cremos na ressurreição dos mortos e n’Aquele
que nos guia para a Páscoa. Diante do interrogatório o cego de nascença do
Evangelho, certamente, fica decepcionado e confuso diante daqueles que
acreditam que enxergam tudo.
Quando o ex-cego
de nascença encontra Jesus novamente, ouve d’Ele a pergunta se ele crê, se ele
vê no verdadeiro homem Jesus, o verdadeiro Deus, o Salvador do mundo.
Hoje, peçamos
ajuda ao cego de nascença para darmos a nossa resposta. Para também nós “estremecermos”
diante d’Ele. Para reconhecermos aquela voz e fixarmos os nossos olhares
naqueles olhos cheios de luz.
Ajoelhemos com o
cego diante de Jesus, agora na Eucaristia. Não porque recebemos um milagre, mas
porque cremos que a nossa vida é um milagre, mesmo que, às vezes, envolvida
pelas sombras, e porque estamos diante do milagre. Creiamos que Deus nos ama e
que está perto de cada um de nós, ainda que não enxerguemos muito bem. Escutemos a Sua voz na Sagrada Escritura e
coloquemos em prática o que nos ensina através da Igreja. Vamos ao Sacramento
da reconciliação para sermos lavados pelo Seu sangue inocente, para que sejamos
curados dos nossos males, das nossas culpas ou da nossa incapacidade de ver
como Ele vê tudo o que somos, tudo o que podemos ser, tudo o que nos acontece. Frei Alfredo Francisco de Souza, SIA –
Missionário Inaciano – formador@inacianos.org.br
– www.inacianos.org.br).
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