(Liturgia da Santíssima Trindade)
Depois
de termos percorrido as etapas principais da vida de Jesus, do Seu nascimento,
da Sua vida pública, Sua morte e ressurreição até o Seu retorno na Ascensão ao
Pai, do qual envia sobre os seus discípulos o Espírito Santo no Pentecostes que
acabamos de celebrar, a liturgia nos convida a “mergulhar” no mistério da
Santíssima Trindade.
O convite é para que contemplemos
em um único olhar o mistério do Deus que a história de Jesus nos fez conhecer.
Isto é, do Deus Uno e ao mesmo tempo, mistério constituído de três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
A
liturgia nos propõe hoje essa solenidade, depois da conclusão do Tempo Pascal,
recordando-nos que nos foi possível descobrir a Trindade de Deus, graças à vida,
morte e ressurreição de Jesus, isto é, à Sua história concreta, às Suas
palavras e gestos, ao seu ensinamento que se traduz em gestos concretos, até o
maior e mais supremo de todos os gestos, a doação da Sua própria vida por nós.
Para celebrar bem a festa, não é
necessário se preocupar com a explicação do fato “estranho” de que Deus é um, e
há n’Ele três pessoas distintas.
A celebração da festa da
Santíssima Trindade nos ajuda a nos aproximar um pouco do mistério do qual nós
procedemos e para o qual retornaremos. Trata-se do mistério do amor que, para
existir, necessita intercambiar-se, ou seja, sair e entrar, perder-se para
poder encontrar-se.
Ao
referir-nos a tão alto mistério, somos assim como os estudiosos da atmosfera.
Pode-se estudar o ar para compreendê-lo melhor e até mesmo para dele fazer
previsões. Contudo, o pressuposto para que se possa estudá-lo é o de que ele
exista, porque é graças a ele que se vive!
O mesmo se dá para nós com relação
à Trindade de Deus. Se pensarmos bem, tudo o que fazemos como cristãos tem a
ver com a Trindade de Deus: o sinal da Cruz, com o qual iniciamos e terminamos cada
oração; a bênção que recebemos e que sobre nós invoca a proteção de Deus, o
batismo que nos introduz na vida divina; o sacramento do matrimônio que recebe
a bênção do pacto de vida e de amor entre o homem e a mulher; o último gesto
com o qual confiamos a terra o corpo do nosso ente querido que partiu. Enfim, todos
esses gestos de fé dizem respeito e significam o nosso desejo de celebrar o
mistério de Deus, de pertencer a Ele, de viver Sua própria vida, porque sentimos
que dentro desse mistério a nossa vida se torna plena e verdadeira!
É nessa perspectiva que temos a
possibilidade de meditar sobre a Palavra que a liturgia desta festa nos propõe,
não como uma "explicação" ou elucidação do mistério da Trindade Santa,
mas como um caminho e uma maneira de nele “mergulharmos”. Portanto, um mistério
que não nos desafia à descoberta, mas que nos desafia e nos chama a nele nos
inserirmos profundamente.
No livro do Deuteronômio, na
primeira leitura, Moisés exorta o povo a tomar consciência da extraordinária
novidade de um Deus que se deixou conhecer libertando-o da escravidão e fazendo
com Israel uma Aliança de fidelidade. Meditando sobre essa história concreta de
salvação é possível compreender e aceitar o convite a reconhecer que somente este Senhor “merece” ser Deus. “Interroga
os tempos antigos que te precederam, desde o dia em que Deus criou o homem
sobre a Terra, e investiga de um extremo ao outro dos céus, se houve jamais um
acontecimento tão grande, ou se ouviu algo semelhante. Existe, porventura,
algum povo que tenha ouvido a voz de Deus falando-lhe do meio do fogo, como tu
ouviste (...)? (...) Reconhece, pois, hoje, e grava-o em teu coração, que o
Senhor é o Deus lá em cima no céu e cá embaixo na Terra, e que não há outro
além dele”!
Trata-se de um Deus, de fato, totalmente
diferente. Este Deus é Deus e assim
merece ser reconhecido porque se compreende que os outros deuses que os povos
adoram, no contexto do Deuteronômio, não entram na história em favor de seus
povos. Como atesta o Salmo, “têm olhos e
não podem ver, tem mãos e não podem tocar” (Sl 115). Portanto, a resposta esperada por parte do
povo de Israel não poderia ser outra a não ser a obediência às leis, que são as
cláusulas do “pacto” assinado, enquanto condições para que o povo viva bem e
por longo tempo, na Terra em que (Israel) vai entrar.
Jesus cumpriu a promessa de fazer
o povo entrar na terra, não naquela terra física de dimensão geográfica de uma
região específica, mas na terra do "Reino de Deus", que anunciou e
abriu a todos. Para isso no momento do Seu retorno ao Pai, como vemos no
Evangelho de Mateus, proposto para a liturgia da solenidade da Trindade Santa, confia
aos Apóstolos a missão de fazer de todos os povos Seus discípulos e de colocá-los
no caminho do Seu seguimento.
A maneira de realizar esse
mandato, em certo sentido, tem o seu primeiro passo no ato de batizar "em nome do pai, filho e Espírito
Santo". É óbvio que não basta a celebração do sacramento do batismo. É
necessário começar a viver, de fato, uma vida nova inserida em Cristo, vivida
na comunidade dos filhos e filhas de Deus, impregnando o mundo com a graça da
filiação recebida. Essa expressão trinitária, que vem da fé madura da comunidade
do Evangelho de São Mateus, significa que o batismo insere o cristão no âmbito
da influência de Deus, que se fez conhecer na história como Pai, Filho e Espírito,
com missões próprias a cada uma dessas “pessoas”.
Já a missão da Igreja, iniciada
pelos Apóstolos, agora consiste em fazer com que todos os homens e mulheres, de todos os povos e nações, de todas as
raças e línguas, sejam introduzidos no “abraço de Deus”, ajudando-os a
libertarem-se assim, da influência das forças que os fazem distanciarem-se da
sua verdadeira identidade. Aliás, muitos anos antes, Paulo já havia escrito essa
boa notícia aos cristãos de Roma, chegando ao ponto central da sua obra mais
organizada, da qual a liturgia da festa de hoje nos propõe um pequeno trecho na
segunda leitura, na carta aos Romanos. “Todos
aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. (...)
Vós não recebestes um espírito de escravos ...mas recebestes um espírito de
filhos adotivos, no qual todos nós clamamos, Abbá, ó Pai!”. (Rm 8). De fato,
para falar da transformação que acontece na vida do cristão, Paulo não poderia
fazer outra coisa a não ser envolvê-lo nas pessoas da Santíssima Trindade.
Diante do mistério trinitário o
cristão é filho de Deus, porque é
conduzido pelo Espírito Santo, cuja
missão é torná-lo capaz de se dirigir a Deus com o nome familiar de
"Paizinho". Para tanto o Espírito não precisa fazer nada além de nos
ajudar a tornar-nos semelhantes a Jesus, o Filho amado.
Essa conformação com o Filho
Jesus tem o seu ponto mais alto quando sofremos com Cristo, quando seguir a
Jesus nos leva mesmo a lidar com os inimigos, sejam eles interiores ou exteriores,
que exigem de nós o dom total de nós mesmos, como aconteceu no confronto de
Jesus com a morte.
Ao compreender o sentido da festa
da Trindade de Deus, nossa preocupação já não é mais a de compreender
intelectualmente como Deus pode ser, ao mesmo tempo, uno e trino. Ao invés
disso, somos atraídos pelo mistério concreto de um Deus que ama o seu povo de
tal modo que é capaz de “sair de Si mesmo”, para chegar ao ponto, ao lugar e à
situação em que o Seu povo está (exceto no pecado), fazendo-Se homem para
sentir aquilo que o seu povo sente. Um Deus assim, quando se doa e se
“desdobra” em três pessoas distintas, não se perde, porque doar-Se é a razão de
ser do amor que se desdobra na Trindade de Deus. (Frei Alfredo Francisco de Souza,
SIA – Superior dos Missionários Inacianos – formador@inacianos.org.br – Website: www.inacianos.org.br).