(Liturgia do Vigésimo Segundo
Domingo do Tempo Comum)
No
coração do ser humano existe uma luta. Suas raízes estão fincadas no drama do
pecado original, que nos "arrasta" ao conflito com Deus e Suas
exigências.
Dizemos
que é luta porque, do outro lado dessa realidade do conflito e rebeldia às
exigências de Deus, sentimos profundamente o fascínio da beleza de uma vida
vivida com Ele e por Ele. "A
minh'alma tem sede de vós, ó Senhor" (Sl 62), reza o salmista na liturgia de hoje. Este é o grito que
sai do íntimo de cada um de nós, vindo da terra sedenta e sem água, que é a
nossa "carne".
Como
tão bem expressou essa realidade Santo Agostinho, cuja memória celebramos nesta
semana que passou: “Fizeste-nos para Vós e inquieto está nosso coração
enquanto não repousa em Vós.” (Confissões. 1, 1, 1).
O nosso repouso está em Deus, a nossa
paz, a alegria da nossa carne e do nosso espírito, reza o Salmo 84: "Meu coração e minha carne exultam no Deus
vivo...O Seu amor vale mais do que a vida...e por isso os meus lábios O
louvam".
Trata-se de um tributo à beleza e
de uma doçura inefável, que brotam do coração de quem, com toda a
espontaneidade e intimidade do coração, expressam como Pedro no Monte Tabor:
"Senhor, é bom estarmos aqui" (Mt 17,4).
Mas,
de onde vem, então, a revolta de Jeremias na primeira leitura deste Vigésimo
Segundo Domingo do Tempo Comum (Jr
20,7-9)?. Sua queixa expressa a rendição de alguém que foi vencido pela
força e pelo poder de uma paixão.
De
onde vem a reação de Pedro, no Evangelho (Mt
16,21-27), que não hesita em reprovar e repreender o próprio Jesus? Por que
está assustado e temeroso diante da perspectiva de vida e de missão na qual se
sente, a essa altura, "arrependido" de estar tão envolvido
como estava?
Como
se explica que dois homens dessa "estatura" espiritual tem tanto
medo? Sim, porque, na verdade, no fundo a raiz da revolta contra Deus, a rebelião
às Suas coisas nada mais é do que medo. O projeto e a proposta são claros: “Se alguém
quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga".
Na realidade, a
questão é esta. No caminho cristão autêntico nasce, inexoravelmente, a sombra
da cruz. A Cruz é loucura, escândalo (1Cor
1,18ss); a Cruz assusta, perturba, provoca.
É
interessante notar que a Cruz anunciada por Jesus constitui escândalo para
Pedro quando, na verdade, escândalo é a reação de Pedro com relação a Jesus:
"A Cruz é loucura para os que se
perdem, mas para os que são salvos, para nós, ela é força de Deus" (1Cor 1,18).
Trata-se,
portanto, de uma perspectiva completamente diferente e de uma abordagem
diametralmente oposta. O que está em jogo é nada menos do que a nossa salvação.
Aliás, São Paulo também nos ensina que os que se salvam são aqueles que
conseguem ver o poder de Deus que se manifesta na Cruz.
Neste
sentido a Cruz é a nossa salvação, como não cansamos de repetir na liturgia. Mas,
até que ponto estamos, de fato, convictos desta verdade? Até que ponto, diante
da hipótese da cruz ou das cruzes, espontaneamente nos defendemos, nos
rebelamos como Jeremias ou como Pedro? Até que ponto não estamos mais para a
reação de Jeremias que chega a exclamar: “Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em
nome dele”? Ou mais para a reação de Pedro que pensa, em
outras palavras: "Talvez Jesus não
tenha se dado conta do caminho que está seguindo, das opções que está
fazendo...talvez seja melhor avisá-lo...quem sabe não seria melhor que eu mesmo
apontasse outro caminho, outras escolhas ... que eu mesmo decida"?
Essas são as típicas reações humanas. Reações compreensíveis, com as quais o próprio Deus, com toda a paciência e boa
vontade, se coloca em diálogo, para fazer ressoar de novo o Seu chamado, como
mostra as palavras de Jeremias: "Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a
penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar".
Como já dissemos, a proposta que está
"em jogo" é a nossa própria salvação! Nada menos. "Quem quiser
salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai
encontrá-la", avisa Jesus.
Aqui uma questão se impõe: como trabalhamos pela nossa
salvação? É certo que o objetivo está claro e sobre isso não há dúvidas, mas,
talvez, não esteja tão clara a forma e o caminho para se chegar lá. Na verdade,
o caminho é aquele traçado por Jesus no Seu mistério pascal, que celebramos em
cada missa com convicção e profunda participação, mas que depois, precisamos
lutar para colocar em prática, pois facilmente podemos nos desviar dele.
O
caminho, de fato, é caminho de "Kenosis", isto é, de um
"esvaziamento progressivo" dos nossos projetos pessoais egoístas, das
nossas expectativas ilusórias de sucesso e de fama. E, convenhamos, aqui temos
um problema, porque a proposta é totalmente oposta à lógica do mundo, isto é, da
mundanidade. Mundanidade que tem
marcado também, infelizmente, a nossa vida cristã e religiosa, tanto que o Papa
Francisco tem falado muitas vezes de "mundanidade espiritual".
O
verdadeiro profeta não trabalha na obsessão dos resultados, pois sabe
confiá-los nas mãos de Deus. Sabe que não pode pôr e valorizar o sucesso em
primeiro lugar, esperando frutos imediatos da sua missão. Os frutos requerem um
tempo de maturação, às vezes longo; muitas vezes é preciso compreender que
"um é o que semeia e outro o que colhe".
O
verdadeiro sucesso está na capacidade do profeta de permanecer fiel à própria
missão, mesmo diante daquilo que, aos olhos do mundo, aparece como derrota,
porque não é importante ganhar o mundo inteiro, mas salvar a própria vida na
obediência da fé à missão que lhe foi confiada.
Neste ponto a
palavra de São Paulo é claríssima na segunda leitura de hoje (Rm 12,1-2), fazendo elo entre a
primeira leitura e o Evangelho, convidando-nos a fazer a oferta do nosso corpo
como sacrifício espiritual, como também alertando-nos para o cuidado necessário de nos afastarmos na mentalidade mundana, para estar em conformidade com o
pensamento de Deus. "Não vos
conformeis como o mundo"! Portanto,
é preciso que os nossos gestos de doação de nós mesmos sejam concretos. Isto é,
uma doação feita de obras de amor, de perdão, de caridade...obras santas, como
resposta à misericórdia de um Deus que entregou-se doando-se inteiro por nós e
para nós, concretamente. Oferta de carne e sangue!
Diante disso, o
apelo da liturgia de hoje é para a modalidade da oferta doação de nós mesmos,
que deve ser pura gratuidade, para que não caiamos nos laços da mentalidade do
mundo, na lógica predominante do "dar para receber", da busca pelo
lucro no agir e nas relações.
Finalmente, tudo
isso, sem perder de tempo, "Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com
os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Frei Alfredo Francisco
de Souza, SIA – Missionário Inaciano – www.inacianos.org.br
- promocaovocacional@inacianos.org.br).
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