(Liturgia do Vigésimo Segundo Domingo do
Tempo Comum)
Na dinâmica da liturgia, somos
servidos com a Palavra, pouco a pouco, de acordo com a nossa capacidade de
acolhê-la, acompanhando os ritmos e os tempos da caminhada da nossa vida cristã.
Neste mês de setembro, de modo
todo especial, somos convidados a lembrar da centralidade da Palavra de Deus,
ao celebrarmos o mês da bíblia.
Na verdade, é uma recordação, a
cada ano, de que é preciso aprofundar a Palavra à qual temos fácil acesso,
através de diversos meios e recursos, enquanto muitos ainda não o tem, seja
porque falta o conhecimento, seja porque faltam as condições ou os recursos
humanos. Assim, o mês da Bíblia é um convite a aprofundar, praticar e divulgar
com mais responsabilidade, seriedade e compromisso, a Palavra de Deus.
Na liturgia de hoje, depois de
ter ter anunciado durante os últimos quatro domingos o Evangelho de São João, o
sinal da multiplicação dos pães e o longo discurso de Jesus sobre o Pão da
Vida, Marcos (Mc 7,1-8.14-15.21-23),
nos apresenta Jesus em discussão com os fariseus, sobre as tradições da
Lei.
Seu Evangelho, que é proposto
para ser proclamado no ano litúrgido B, nos apresenta a vida de Jesus, revelando-O nas
suas páginas. Em cada uma dessas páginas somos colocados diante do mistério
central da Páscoa de Jesus, ou seja, a passagem da morte à vida, da escravidão
à liberdade.
Diante disso, temos que nos perguntar
se estamos, de fato, vivendo esse mistério em nossas vidas. Para tanto, Marcos
promove o encontro com Jesus durante o Seu ministério na Galileia, no confronto
com os fariseus, um dos grupos religiosos do judaísmo de Sua época, sobre a
questão “religiosa” da pureza ritual.
Na verdade este tema diz muito
pouco a nós, mas para um judeu, esse assunto fazia parte da dimensão central do
seu relacionamento com Deus. Lembremos o livro do Levítico, no qual Deus dá ao
povo leis para viver de uma maneira diferente de outros povos, sobretudo,
porque se trata de um povo resgatado da “mão” do Egito e que pertence a um novo
Senhor, isto é, pertence a Deus.
Já que Deus é “santo”, adjetivo
que significa separado, distinto do resto, o povo que lhe pertence e que vive
com Ele a Aliança, deve ser “santo” também. Isto se alcança e se manifesta
mediante uma série de práticas litúrgicas e rituais.
Não é difícil compreender, com
relação ao tema, ser uma tarefa difícil distinguir aquilo que é a vontade de
Deus e a maneira humana de realizá-la, condicionada pelos tempos e lugares.
Igualmente, compreende-se que,
com o passar do tempo, essas práticas, distanciando-se do seu início, correm o
risco de ofuscar o sentido que tem. E isso é o que vimos no Evangelho deste
vigésimo segundo domingo do Tempo Comum.
Os fariseus condenam e atacam a Jesus
porque não ensina e não exige dos seus discípulos a observância das normas de
pureza.
Na verdade, não é a primeira vez
que agem assim. Já tinham atacado Jesus mais de uma vez, como por exemplo,
quando O tinham visto comer com os pecadores (Mc 2,15-17), quando perceberam que os discípulos de Jesus não
jejuavam (Mc 2,18-22), e quando
tinham visto os mesmos discípulos colherem e comerem as espigas no sábado, como também quando
viram Jesus curar um homem, no mesmo dia (Mc
2,23-3,6).
Agora, mais uma vez, notam que os
amigos de Jesus não observam plenamente as tradições. Isto é, não se purificam
como deveriam, de acordo com o preceito, antes da refeição. O costume judaico
de lavar as mãos antes de comer não tem o seu fundamentado tanto nos motivos de
higiene, mas sim, nos preceitos religiosos.
A observância da maneira exata de
lavar o corpo, assim com a maneira correta de lavar a louça usada para as refeições,
dava ao judeu a "garantia" e a "certeza" de “estar aprovado” diante de Deus. Sem
mencionar que as regras dessa purificação eram, de fato, exageradas.
Como sempre, Jesus com um olhar
que sabe ir para além da superfície, para “ler” em profundidade, não pode
aceitar essa atitude estéril e hipócrita dos seus adversários.
Ele percebe que o que deveria ser
uma questão do coração, isto é, do eu interior, torna-se apenas uma questão de limpeza
externa das “mãos” ou dos “lábios”.
A pureza, diz Jesus, não é algo
externo a nós! Não se deve confundí-la com o aspecto exterior. Portanto, o que
Jesus quer que os seus discípulos compreendam, e isso é para nós um grande
desafio, num mundo em que basta apenas “parecer ser”, é que é possível até sermos
perfeitamente limpos, apresentáveis e até elegantes aparentemente sem que, contudo, sejamos,
realmente, puros, interiormente. Isso sim seria um tipo de sujeira das mais repugnantes, provocada
pela hipocrisia e pelas formalidades.
Jesus, como de praxe, aproveita
para ir até a raiz da questão e denuncia a hipocrisia escondida debaixo da
observância religiosa, citando uma passagem famosa de Isaías, que contrapõe o
culto feito com os lábios ao desejo que nasce no coração, e se concretiza na
atitudes. Denuncia o grave erro dos fariseus de dar mais importância aos
preceitos elaborados pela tradição, perdendo de vista o sentido profundo da lei
revelada a Moisés e transmitida nos primeiros livros da Bíblia. Ele nos
convida, portanto, a interrogar o nosso coração e as nossas intenções, para não
corrermos o risco de nos escondermos por detrás de uma bela fachada feita de
circunstâncias aparentes, e nos avisa que não basta parecer ser um bom homem,
mulher, bom pai, mãe, religioso, religiosa, caridoso, amigo, honesto, verdadeiro...
e assim por diante...mas que é preciso ser,
de fato e autenticamente.
A primeira leitura (Dt 4,1-2.6-9) contém uma passagem do testamento de Moisés ao povo,
que é chamado a praticar a lei recebida de Deus sem alterá-la, pois é correta, é
fonte de sabedoria e permite ao homem estar próximo, bem como ser íntimo de
Deus. É por isso que o que Jesus denuncia, não é a Lei, mas a hipocrisia que
está no fato de viverem usando máscaras, mostrando a Deus uma obediência apenas
exterior, ao cumprir à risca os preceitos, quando as suas vidas reais seguem
outros valores, muito diferentes da Lei divina.
O gesto religioso torna-se o
oposto do que quer transmitir e do que deveria ser. Ao invés de aproximar de
Deus, é apenas uma máscara que se usa e que nos faz viver, pelo contrário, cada
vez mais longe d’Ele.
Continuando a catequese, Jesus
ensina que a verdadeira “pureza”, isto é, a santidade, aquilo que torna o homem
mais imagem e semelhança de Deus, não se dá pelo que “entra nele”, como os
alimentos permitidos ou não, ou pelo seu exterior, mas por aquilo que “sai’ do
seu interior e se manifesta nas suas atitudes, diante do mundo, da vida e das
pessoas com as quais se relaciona.
Quando do coração humano saem os
desejos marcados pelo egoísmo, tal e qual os exemplos que Jesus oferece, a
saber, “más intenções, imoralidades,
roubos, homicídios, adultérios, ambições desmedidas, perversidades, fraude,
devassidão, inveja, calúnia, orgulho e insensatez”...a única coisa que
podem produzir é o pecado.
Mas um caso positivo, contrário,
portanto, ao comportamento farisaico do Evangelho e denunciado por Jesus, é
desenvolvido pela carta de São Tiago que escutamos na segunda leitura (Tg 1, 17-27).
Quando o coração humano acolhe o
dom gratuito da Palavra de Deus que, num certo sentido, corresponde à Lei, no
sentido de ensinamento para vida, e a faz crescer e produzir frutos, então a
atitude “religiosa” do ser humano, isto é, a sua resposta a Deus, é aquela que
Deus deseja e espera. Ela se transforma em socorro aos órfãos e às viúvas, tipo das pessoas mais vulneráveis e frágeis da época. Trata-se do cuidado,
justiça, atenção, solidariedade e sensibilidade para com as pessoas que estão
em necessidade.
A fé cristã é viva e leva à
verdadeira “pureza” (santidade) na medida em que passamos da exterioridade dos
gestos religiosos, que em si são bons, mas ambíguos, às atitudes que são santas,
na medida em que correspondem aos gestos e atitudes de Jesus.
Neste mês dedicado de modo
especial à Palavra, estamos convocados a purificar, no sentido mais profundo e
ensinado por Jesus hoje, as nossas idéias e as nossas atitudes, no que concerne
ao relacionamento com Deus, e na práticas decorrentes desse relacionamento, em atitudes para com o próximo.
Trata-se de prestar mais atenção
nas palavras e nos exemplos de Jesus. Quer dizer que devemos nos preocupar menos com a exterioridade e as aparências, e mais com o nosso interior.
Significa dar menos ouvidos aos
preceitos meramente humanos e mais à Lei de Deus. Só assim, seremos santos, de
fato, não tanto por aquilo que os nossos lábios pronunciam, mas por aquilo que
as nossas atitudes dizem. E aí então, nossas atitudes serão os nossos
lábios. O que importa, de fato, é o que
elas “falarão”. (Frei Alfredo Francisco
de Souza, SIA – Superior dos Missionários Inacianos – formador@inacianos.org.br
– Web site: www.inacianos.org.br).