(Liturgia do Vigésimo Sétimo Domingo do Tempo Comum)
"Não
é bom que o homem esteja só". O "clamor" da solidão que brota do
nosso coração sedento de companhia é acolhido e sentido também por Deus. Mais
ainda, é como se estivesse escrito no mais íntimo de cada ser humano. "Não
é bom". De fato, não parece ser do gosto de Deus a solidão do
coração!
É
por isso que Deus povoa o espaço ao redor do homem de criaturas, animais
selvagens e pássaros do céu e feras selvagens. Depois, Deus os apresenta ao
homem e pede para que nomeie a cada um dos animais, pede para domesticá-los.
"Mas, o homem não encontrou uma companhia semelhante, que correspondesse a
ele", lemos na primeira leitura (Gn
2,18-24). Não é de se admirar, afinal, esses eram seres
"inferiores" com os quais não é possível um diálogo, tampouco a
partilha de intenções e projetos. É claro que toda criatura é boa e bela em si,
e louva a Deus com a sua vida, mas isso não significa que consiga saciar a sede
de companhia que habita o coração humano.
"Então,
o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre Adão". É preciso compreender
que o caminho para encontrar "um semelhante que lhe correspondesse" não
existe sem o sofrimento, sem "um preço" ao próprio homem, isto é, ao
ponto de "ferir" a sua própria
carne.
O
homem adormece, depois desperta com alguma coisa a menos em si. Algo lhe foi
tirado. Mas é daquilo que foi retirado, do humano que foi privado é que nasce,
finalmente, a criatura que pode corresponder a ele, estar à sua altura. Isso o
torna feliz ao ponto de fazer irromper de seus lábios um canto de louvor, mesmo
que breve, mas intensa antecipação dos Cânticos dos Cânticos: "Desta vez é osso dos meus ossos, carne
da minha carne...desta vez é como eu, "é outro eu"!
O
primeiro ensinamento que podemos tirar das leituras de hoje é que, não há
relacionamento verdadeiro de comunhão sem que se tenha que doar algo de si, ou
sem que algo de meu seja colocado de lado para abrir espaço de disponibilidade
e de vida ao outro.
A
carta aos Hebreus (2,9-11) na
segunda leitura nos lembra bem que o sofrimento pode ser
caminho que conduz à perfeição. Trata-se
de um caminho tão seguro que o próprio Jesus o percorreu por nós e conosco, tornando-se
assim, nosso irmão. A verdade é que uma união entre as pessoas que não teme o
sofrimento, no próprio sofrimento se consolida ainda mais e se torna comunhão
perfeita entre elas.
A
pergunta que os fariseus fazem a Jesus no Evangelho deste Vigésimo Sétimo
Domingo do Tempo Comum (Mc 10,2-16)
é uma pergunta maldosa e tendenciosa. O evangelista nos informa que os fariseus
vieram "para pô-lo à prova".
Jesus,
como sempre, está firme na Sua verdade, a verdade que é Ele mesmo, e que Ele
não pode renegar. A lei diz que é lícito a um homem repudiar a própria mulher,
mas para Jesus, este é o momento de dar pleno cumprimento à lei de Moisés,
porque para isso é que Ele veio: "não para abolir, mas para levar a lei à
plenitude" (Mt 15,17).
"A
plenitude da lei é o amor' (Rm 13,10).
"Portanto, o que Deus uniu, o homem
não separe". Isto é, que ninguém separe o que o Amor uniu. O amor não
é um sentimento vago e abstrato, mas uma "lei de vida" que, como toda
lei, tem conseqüências concretas que a tornam verdadeira e, verdadeira, porque
pode ser verificável.
Entre
essas leis, certamente a mais fundamental é aquela que Jesus nos ensinou com a
Sua própria vida: "Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a vida por seus amigos" (Jo 15,13).
Dizíamos
antes que o sofrimento é que torna o amor perfeito. Se amar é dar a vida, vida que
não se doa sem perdê-la, e perder a vida provoca dor. A verdadeira união se
torna sólida e estável quando é provada no sofrimento, pacientemente acolhido e
carregado, quando permitimos que a cada dia algo de nós mesmos nos seja
retirado (como a costela) para que o outro tenha a vida. Aí está a garantia de
que o relacionamento seja duradouro...eterno.
Contudo,
se o sofrimento é sempre provocado por uma das partes e sofrida pela outra,
tudo se torna difícil, talvez não impossível, mas terrivelmente difícil, provavelmente sem
futuro.
Confrontando
a Palavra de Deus neste domingo com o nosso tempo e aos nossos dias, dias,
aliás, de diversas e graves crises, sobretudo no matrimônio, percebemos que, em
muitos casos, o fracasso dos relacionamentos nasce da incapacidade reconhecer o
limite do outro, de acolher as surpresas que o outro reserva, inclusive nos
detalhes do que compartilha na relação.
Há
ainda outros motivos para o fracasso dos relacionamentos, como por exemplo, de
um lado, a incapacidade em um aceitar que o outro a partir "da minha
costela", e do outro lado, de não aceitar ter que "depender" ter
a vida, a partir da "costela" que o outro me dá.
Metáforas
à parte, a verdade é que essa incapacidade se resume em não conseguir construir
"espaço" dentro da minha vida para a vida do outro, para que,
verdadeiramente, das duas "carnes" nasça uma única carne. Uma
"carne" nova, inédita, original e surpreendente na sua beleza.
É
verdade, bem sabemos, que às vezes isto é impossível e, então, a cura maternal
da Igreja intervém e desfaz, ou declara não existente, um vínculo que, por
razões próprias, não poderia sustentar-se para existir. Muitas vezes, desfazer o vínculo é muito difícil, mas ainda aí
a Igreja deve intervir com o remédio da oração, da graça dos sacramentos, do
conselho, do acolhimento e da atenção da comunidade.
Não
é por acaso que o Evangelho termina chamando a nossa atenção para as crianças
que, parecem, mas apenas parecem, estar no lugar e na hora errados. Elas
representam o fruto da carne nascido do amor. São geradas pelo amor da união em
"uma só carne".
As
crianças, com a sua pureza e inocência é que podem nos ensinar a abrandar a
"dureza" dos nossos corações. Quanto tudo nos relacionamentos parece
desmoronar, aí estão as crianças, sinal incontestável do amor.
Jesus
as apresenta como a porta segura de entrada no Reino, da paz do Paraíso já
nesta terra. Talvez, falte-nos parar um pouco para escutar e observar as
crianças, contemplar as suas brincadeiras, acolhendo o seu choro e refletindo
sobre as perguntas que nos fazem. Essa atitude poderia ser para nós uma ótima
escola de simplicidade para enfrentar as lutas e dificuldades da vida, as lutas
do um casal para viver o matrimônio, e não fugir nas primeiras quedas, sabendo
que, quando o ser humano insiste em dividir o que Deus uniu, inclusive os
frutos da união de duas carnes, que se tornam, então, uma única carne,
inevitavelmente, o resultado será a sua própria "carne" destruída. Frei Alfredo Francisco de Souza, SIA.
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