(Liturgia
do Segundo Domingo do Tempo Comum C)
Há momentos da vida que
consideramos especiais, porque contém e exprimem os sentimentos e os
significados mais profundos de tudo o que somos e fazemos. Talvez seja por isso
que queremos fotografá-los ou filmá-los.
A partir dessa experiência
tomamos consciência de que a vida passa como um sopro e desejamos, de certo
modo, recolher gestos, momentos, pessoas, palavras e lugares que nos dizem
muito mais do que aquilo que retratam, porque falam ao coração.
Quem de nós não guarda uma
fotografia, talvez já amarelada, e quando a contempla de novo com saudade sente
o coração pacificado, e então, sente brotar de novo a fé na vida, na família, na
amizade, na sua história?
Talvez essa experiência nos ajude
a ler e compreender um pouco mais as páginas do Evangelho (Jo 2,1-11) deste Segundo Domingo do Tempo Comum.
Elas são como “fotografias” com
as quais os primeiros cristãos nos transmitiram momentos especiais da vida de
Jesus. Talvez, mais do que fotografias,
são “quadros”, como gosto de comparar, pintados pelos evangelistas, “em nome”
das comunidades.
Entre os momentos especiais da
vida, vividos e expressos de diferentes modos, segundo a cultura, o tempo e os
costumes, está a festa de casamento que expressa a alegria da vida iluminada
pelo amor que vence as dores e os temores, como diz a Palavra de Deus: “o Amor é mais forte do que a morte”!
Passagem simbólica e central da
vida humana, o casamento é um passo importantíssimo para a maioria dos homens e
mulheres chamados a constituir uma família.
Jesus, o Deus nascido para viver
totalmente a nossa vida humana, pertencia a uma cultura e religião judaica, que
valorizava muito o matrimônio, sinal de bênção divina e caminho através do qual
o milagre divino da criação continua a perpetuar-se no mundo.
A festa de casamento, que durava
alguns dias, era também uma experiência de fé, porque cada casamento atualizava
a Aliança de Deus com a humanidade e renovava a espera pelo Messias.
São João (Jo 2,1-11) o “artista” que “pintou” este quadro, escolheu
representar a inauguração da missão e vida pública de Jesus com um banquete de núpcias.
E quem reformou o Ano Litúrgico depois do Concílio Vaticano II escolheu este
“quadro” do capítulo dois do Evangelho de São João para o início do Tempo
Comum, depois da Epifania e do Batismo do Senhor.
É bom lembrar que a tradição da
Igreja, de fato, exprime o mistério da Epifania não apenas com a visita dos Magos,
mas também com o Batismo de Jesus e com as Bodas de Caná, porque nesses
mistérios Jesus se “manifesta” ao mundo.
Mas, por que esta escolha? Não se trata de um
acaso, tampouco de outro modo de começar a vida pública de Jesus e muito menos,
um pretexto para iniciar o Tempo Comum.
Se lermos com mais calma e
interesse esta página do Evangelho, perceberemos que a cena evangélica não
pretende apenas descrever um fato da época, mas quer comunicar um significado
que vai muito além do que vemos no “quadro”.
Quem eram os noivos? Como se
chamavam? Qual é a história deles? Quem eram seus pais? São João não nos diz
nada sobre isso. E convenhamos, isso tudo não são detalhes irrelevantes. A sua
atenção é voltada para o fato de que, num certo momento da festa, o vinho acaba
e, por isso, a festa corre o risco de fracassar.
Já sabemos como termina a
história do gesto de Jesus de transformar água em vinho. Tornou-se até um
provérbio usado nos dias de hoje.
Não é difícil compreender por que
Jesus não permitiu que a festa de casamento terminasse num fracasso total. Se as
núpcias contêm o sentido da Aliança de relacionamento amoroso e fiel de Deus
com a humanidade, e se o vinho é símbolo da festa e da alegria, podemos
concluir que Jesus veio para que nunca faltasse o vinho das núpcias, não
faltasse a alegria da vida! Isto é, a confiança de que a vida, mesmo com os
seus limites humanos, sejam físicos ou psíquicos, é um dom gratuito, feito por
amor.
Ampliando o olhar sobre o quadro
do Evangelho lembramos que João insere os primeiros episódios da vida de Jesus
no tempo de uma semana. A festa das núpcias acontece no sexto dia, depois que
nos dias anteriores, Jesus havia começado a acolher e a chamar para Si alguns
discípulos.
Veremos também que há outra
história na bíblia que começa e se desenvolve durante o período de uma semana.
Trata-se da criação do mundo (Gn 1). No sexto dia Deus criou o homem e a
mulher, abençoando a sua união e a sua capacidade de dar a vida.
Não é demasiado arriscado ligar
essas duas histórias, visto que os primeiros cristãos tinham a clara
consciência de que Jesus tinha inaugurado os “últimos tempos”.
Com a vinda de Jesus é chegado o “tempo
das núpcias” que celebra, definitivamente, a Aliança de amor entre Deus e a
humanidade, da qual a aliança entre homem e mulher é, desde o início da
criação, fruto e sinal, como nos apresenta o profeta Isaías na primeira leitura
(Is 62,1-5), através do renascimento
de Jerusalém, com “tons” festivos de núpcias entre Deus e a cidade, entre o
Criador e as Suas criaturas.
Em todo o Evangelho, a Boa
Notícia proclamada por Jesus, está contida este gesto inaugural. Por isso João
diz que naquela ocasião Jesus deu início aos sinais e revelou a Sua glória. Aliás,
a glória de Jesus, que é a glória de Deus, é tornar possível a plenitude feliz
da vida humana.
Observemos ainda dois detalhes na
cena “pintada” por São João. De um lado está Maria que, muito atenta, nota o
fato de o vinho ter acabado: “Eles não
tem mais vinho”! E percebe também que os convidados já estavam, eufemisticamente
falando, “alegres”.
De outro, estavam numa festa de
casamento, não numa celebração religiosa ou num velório. Maria, mulher do
silêncio, percebe isso também e se dirige a Jesus. Este detalhe é belíssimo!
A resposta de Jesus parece
desrespeitosa para com a Sua Mãe, para não dizer, ofensiva. Mas Ele não
despreza a sugestão de Maria e, não só salva os noivos do constrangimento
humilhante, como também providencia cerca de seiscentos litros de vinho para a
festa. E vinho dos bons, não um vinho qualquer!
Se os convidados já estavam “alegres” antes...
Outro pequeno detalhe que não é
mencionado de maneira explicita, mas que se subtende facilmente é que aquelas
seis talhas, isto é, vasos com capacidade de cerca de cem litros cada, tinham
sido postos ali não para conter e conservar o vinho, mas para a purificação das
mãos, costume entre os judeus que não permitiam que ninguém sentasse à mesa sem
antes ter-se lavado adequadamente. Então, Jesus ordena que encham esses vasos e
é neles que transforma água em vinho.
Mas por que Jesus não quis usar
os outros vasos ou os recipientes que continham o vinho que tinha acabado?
Imagine, portanto, que depois que tanta gente que tinha vindo à festa ter purificado
ali as suas mãos, como não deveriam estar esses vasos dentro dos quais Jesus
realizou o milagre?!
Tomando consciência desses
detalhes, é bom lembrar mais uma vez que Maria percebe a falta de vinho, se
dirige a Jesus e Lhe comunica a situação e que depois, Ele mesmo manda que
encham de água as talhas, predispostas para a purificação dos judeus.
Não podemos prescindir do imenso
papel que Maria tem para a nossa fé. De fato, os Padres da Igreja deixaram
claro nos seus escritos que, sem Maria, é mais difícil chegar a Deus. Maria,
não nos esqueçamos, percebe com sensibilidade cada detalhe da nossa vida, por
menor que seja, e o apresenta a Jesus, como fazem todas as mães.
À primeira vista, parece que o
grande sinal de Jesus ocorre, não espontaneamente, mas um pouco “forçado” pelo
pedido inegável da Mãe. Porém, olhando atentamente o “quadro” e toda a obra de
João, sabemos que não é essa a mensagem que depreende do primeiro sinal de
Jesus.
Jesus o realiza com toda a Sua
vontade e consciência. Todavia, o que interessa a João é fazer ecoar nesta
primeira página a frase de Jesus: “Minha
hora ainda não chegou”, o que, provavelmente, devemos entender como uma
pergunta do Filho à Mãe, e a todos nós.
A intenção é fazer-nos
compreender que o que aconteceu em Caná é apenas o começo de algo que ainda não
está completo, como também, transformando em vinho a água colocada naqueles
vasos impuros, Jesus quer fazer-nos entender que Deus não se esquiva das nossas
“sujeiras”, das nossas impurezas, mas pelo contrário, Deus consegue tirar delas
algo melhor, mesmo daquela água cheia de sujeira que criamos com nossos pecados,
pois não há quem não tenha nada de bom!
Deus oferece esse vinho em
abundância, não apenas para saciar-nos, mas para que participemos da Sua
abundância. Portanto, Deus nos dá não apenas um “aperitivo” da Sua alegria, mas
nos permite “embriagar-nos” do vinho da alegria que brota do Seu coração!
Desde a primeira página percebemos
que o texto se encaminha para o sentido de um cumprimento, que é destinado a
uma conclusão, representada pela morte e ressurreição de Jesus. Ou seja, a
Aliança de Deus com a humanidade se cumpre com o dom total da Sua vida.
Na despedida aos discípulos
durante a última Ceia, aqueles que viram a Sua glória e creram em Caná, o vinho
da festa e o sangue da Nova e Eterna Aliança na Sua morte na cruz são uma coisa
só.
Na cruz
Jesus chama novamente Maria com o título de “Mulher”, que na sua dor recebe um
novo filho na pessoa do discípulo que Jesus amava. A alegria da vida, ameaçada
de fracassar por causa da morte, será plena novamente no momento do novo
encontro com o Ressuscitado. “Porque o amor é mais forte do que a morte”!
(Frei Alfredo Francisco
de Souza, SIA – Superior dos Missionários Inacianos – formador@inacianos.org.br – Web site:
www.inacianos.org.br).
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