(Liturgia do Domingo de Ramos)
O Domingo de Ramos se apresenta como uma grande porta aberta que nos convida a fazer uma entrada. De fato, neste domingo, entramos, com toda a Igreja no memorial do Mistério Pascal durante a celebração litúrgica desta Semana Santa. Que nos seja permitido servir-nos da entrada por esta porta como fio condutor da nossa reflexão sobre os riquíssimos textos das leituras que nos apresenta. O conjunto das leituras que a liturgia de hoje nos oferece é muito vasto:
- o Evangelho da procissão dos ramos (Mc 11,1-10);
- a leitura do Antigo Testamento (Isaías 50,4-7);
- o Salmo responsorial (Sl 21)
- a Leitura da Carta do Apóstolo Paulo (Fl 2,6-11)
- a narração da Paixão segundo o Evangelho de S. Marcos.
Neste conjunto as leituras estão, podemos dizer, conectadas por um estreito tema. Como não é possível uma adequada reflexão sobre cada uma das leituras, deixemos fora o relato da Paixão, que terá o seu lugar central na celebração da Sexta feira Santa, para deter-nos um pouco no Evangelho da procissão dos ramos (Mc 11,1-10).
A proclamação deste Evangelho faz-nos reviver a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Neste contexto, o verbo “entrar” assume um significado fundamental e nos abre os olhos para aprofundar o significado do incomparável mistério que revivemos.
O verbo “entrar” permite-nos fazer uma ligação com a Epístola aos Hebreus da qual nos serviremos, porque nos fornece uma chave de leitura sobre o significado da Paixão e morte de Nosso Senhor.
Jesus entra em Jerusalém num jeito pobre, cavalgando um jumento, mas a atmosfera é de uma entrada triunfal, de um rei vitorioso, particularmente pela exclamação da multidão: “Bendito o que vem, hosana ao filho de Davi”! A aproximação com a Epístola aos Hebreus nos apresenta Jesus mais como Sacerdote que oferece a Si mesmo como sacrifício expiatório pelos pecados do mundo. Por esse motivo a Sua “entrada real” em Jerusalém adquire um significado sacerdotal fornecendo uma luz interpretativa à narrativa da Paixão que será lida como Evangelho da missa.
Vamos à carta aos Hebreus: “...A primeira Aliança tinha normas para o culto e um santuário que pertencia a este mundo. De fato, foi construída uma primeira tenda, chamada “o Santo”, onde se encontravam o candelabro, a mesa e os pães da proposição. (...) Estando tudo assim disposto, os sacerdotes a todo momento entram na primeira tenda para realizar o culto. Na segunda tenda, porém, só entra o sumo sacerdote, uma vez por ano, levando o sangue que ele oferece por si mesmo e pelos pecados do povo. (...) Cristo, porém, veio como sumo sacerdote dos bens futuros. Ele entrou no Santuário através de uma tenda maior e mais perfeita, não feita por mãos humanas, nem pertencendo a esta criação. Ele entrou no santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna. De fato, se o sangue de bodes e touros e a cinza de novilhas espalhada sobre os seres impuros os santificam, realizando a pureza ritual dos corpos, quanto mais o sangue de Cristo purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Pois em virtude do Espírito eterno, Cristo se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha” (9,1-2.6-7.11-14).
O sacrifício de Cristo foi um sacrifício pessoal e existencial, porque ofereceu a Deus não uma vítima animal, mas a própria vida! Ele fez de Si mesmo a vítima sacrificial, e pelo fato de ter oferecido a Si mesmo, o seu sacrifício não foi exterior à Sua pessoa, mas foi um sacrifício voluntário, de Si mesmo.
Diferente dos sacerdotes do Antigo Testamento, que buscavam o perdão também pelos seus próprios pecados, Cristo pôde elevar um sacrifício deste gênero porque era verdadeiramente “sem mancha”. Consequentemente, Deus Pai o acolheu.
A dimensão sacrificial foi que animou todo evento terreno de Cristo desde a sua encarnação. Voltemos à Carta aos Hebreus, que faz a ligação explícita com o culto do Antigo Testamento: “Pois é impossível eliminar os pecados com o sangue de touros e bodes. Por essa razão, ao entrar no mundo, Cristo declara: “Não quiseste vítima nem oferenda, mas formaste um corpo para mim. Não foram do teu agrado holocaustos nem sacrifícios pelo pecado. Então eu disse: Eis que vim, ó Deus, para fazer a tua vontade, como no livro está escrito a meu respeito”. (...) É em virtude desta vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas” (10, 4-7.10).
Este “entrar” de Jesus no mundo indica que na Sua missão, aceita desde o início, Ele estava consciente do seu “dever tornar-se sacrifício”, o verdadeiro e verdadeiramente eficaz sacrifício de expiação de todos os pecados, que na Paixão atinge a sua máxima realização, porque mais do que nunca, Ele sacrificou a própria vontade para levar a termo a missão divina.
A amplitude desta reflexão sobre o texto da carta aos Hebreus, deveria fazer-nos entrar mais facilmente no sentido das leituras da liturgia de hoje.
A primeira leitura (Is 50,4-7), faz parte do Dêutero Isaías e nos apresenta a figura do Servo Sofredor. Ele aparece como um personagem ao qual está ligada uma missão ativa no desígnio de salvação universal. Ele não é somente “o lugar” no qual o desígnio de Deus se manifesta e brilha diante de todos, mas assume um papel ativo de mediação.
O Seu sofrimento não é apresentado como consequência do pecado e/ou infligida por Deus como um castigo purificador, mas como algo inerente à Sua missão salvífica. Ele recebeu, antes de tudo, um dom de Deus: a capacidade de falar e de aliviar os cansados e abatidos. A possibilidade de dizer a palavra certa é fruto da constante atenção no confronto com a Palavra do Pai e, por outro lado, é fruto também da capacidade de perceber a vontade de Deus como seu dom, ao qual o Servo se coloca totalmente disponível. A capacidade de escuta, torna-se capacidade de acolher o desígnio de Deus para poder estar a serviço do ensinamento e da clareza da fé, bem como de conforto aos cansados e abatidos.
A segurança do Servo está unicamente na fidelidade ao Senhor e a perseguição que deve suportar é uma perseguição ligada à vocação profética e missionária no âmbito da fidelidade a Deus.
A narração da Paixão em Marcos, na liturgia da missa de hoje, quer claramente apresentar Jesus como o “Servo de JHWH” (IAVÉ), mostrando que Jesus atende à expectativa à pessoa do profeta. Os ultrajes, que parecem uma vitória sobre Jesus são, na realidade, não uma derrota do plano de Deus, mas a sua profunda realização. Por isso Jesus é a chave que permite a nós, hoje, compreender em profundidade o texto de Isaías.
A segunda leitura (Fl 2,6-11) nos leva ao coração do mistério da Paixão de Jesus: aquele Seu “entrar” se manifesta aqui em toda a sua dimensão de sacrifício aceito, sacrifício “querido” que envolve todas as dimensões existenciais deste Filho totalmente disponível ao querer do Pai. Paulo, que utiliza este hino para os cristãos como motivação profunda para enfrentar as situações difíceis que se apresentam na missão da evangelização, formulou o mistério de Cristo como mistério de “abaixamento” e de “exaltação”, como realização da figura profética do Servo de JHWH (IAVÉ).
A liturgia de hoje se apresenta para nós, portanto, como um convite a “entrar” com Jesus na grande celebração da Semana Santa, para sermos juntamente com Ele, vítima e sacerdote, carregando com Ele as nossas ansiedades, sofrimentos e o pecado de toda a humanidade, para oferecer nossas vidas ao Pai, entrando no Templo que é o corpo de Cristo, para esperar, com plena confiança, ressurgir com Ele, participando da humanidade transfigurada na nova Jerusalém, ao sair com Ele do túmulo! (Frei Alfredo Francisco de Souza, SIA – Superior dos Missionários Inacianos – formador@inacianos.org.br – Website: www.inacianos.org.br).