Liturgia
do Quarto Domingo do Tempo Comum
Deus é um artista. Na verdade é o
artista por excelência! Os artistas, como sabemos, são um pouco diferentes da
maioria das pessoas. Têm mais imaginação e criatividade do que o normal.
Imaginemos, então, Deus como a
imaginação e a criatividade em Pessoa! Quando lemos a Sua Palavra percebemos
que é o amor que move a Sua arte. E o amor de Deus é imenso para cada pessoa!
A liturgia deste Quarto Domingo
do Tempo Comum nos apresenta a figura do Profeta como o protótipo do homem de
fé. Na primeira leitura, que nos fala de criação através das palavras: “te conheci, te consagrei, te formei”,
como expressões do coração de Deus que, consciente da Sua presença e força na
vida dos seus, deixa claro que Sua obra, a sua “arte” não é destinada ao
fracasso. Pelo contrário, Ele tem a certeza que das Suas mãos sairá uma verdadeira
e maravilhosa “obra de arte”.
Os verbos usados na arte da
criação exprimem o cuidado, a ternura e o amor de um Deus que deseja tanto a
comunhão com a obra das Suas mãos que, na Sua imensa grandeza, tem a arte de se
fazer pequeno e frágil, ao assumir a natureza humana.
A missão do profeta é, portanto,
viver esta comunhão com o “Artista” que o formou, para ir, ser sinal de
esperança e de salvação “entre os seus”, mas especialmente, para mostrar, com a
sua atitude de vida, a fé no Deus que o chamou e lhe deu a incumbência de falar
em Seu nome.
Mas é preciso cingir a cintura,
ou seja, remover qualquer impedimento ao caminho e à missão, como Ele nos fala
na primeira leitura (Jr 1,4-5.17-19), e proclamar sem medo, sabendo que Deus,
Ele mesmo o acompanha e faz "uma
coluna de ferro, um muro de bronze”, sinais da fortaleza construída para
vencer uma guerra.
A guerra da qual se fala nesse
contexto é uma guerra antiga, iniciada desde o princípio. Trata-se da guerra
contra as trevas, do bem contra o mal, da vida contra a morte, sobretudo porque
é sabido que a treva ainda hoje se rebela contra a luz, assim como a morte e o
mal contra a vida e o bem! Mas o profeta é aquele que “saiu da luz”, aliás, ele
mesmo em comunhão com o Deus da luz, é luz.
A Palavra de Deus proclamada no
Evangelho (Lc 4,21-30) nos leva para a sinagoga de Nazaré, exatamente no ponto
onde São Lucas nos deixou no Evangelho do domingo passado. Jesus está entre as
pessoas que O conheciam desde a infância. Ali tinha dito uma palavra forte,
retomada no texto do Evangelho deste domingo: "Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”.
Vamos tentar “entrar” nos
pensamentos daquelas pessoas que O escutavam na sinagoga. Imaginemos se isso
tivesse acontecido na nossa vizinhança ou no nosso círculo de convivência. De
repente, uma pessoa comum, uma pessoa “qualquer” se torna um personagem
“famoso”.
Jesus, de fato, naquele contexto
era uma pessoa “qualquer”. Entre os poucos habitantes de Nazaré, cidade “sem
importância” sob vários aspectos, não havia nenhuma celebridade.
Ele era simplesmente o filho
José, o carpinteiro. É exatamente isso que é belíssimo! Deus se fez homem e levou
a vida de um homem comum durante trinta anos. Sim, porque sabemos que Jesus não
andava pelas ruas de Nazaré, aliás, por nenhum outro lugar, alardeando: “Eu sou
o Filho de Deus”, até que um dia partiu para o Rio Jordão.
Depois de iniciar a Sua vida
pública, havia começado a fazer coisas das quais a notícia se difundia
rapidamente, inclusive na sua própria cidade, entre a sua própria gente, desde
palavras e expressões de forte impacto, ousadas e profundas, como também
milagres nunca vistos antes, como água que se transformava em vinho.
A reação não poderia ser outra a
não ser o espanto crescente. O retorno a Nazaré, portanto, é a manchete daquele
sábado. Todo mundo está curioso para vê-Lo. Olhos e ouvidos voltados para Ele. Do
sentimento de espanto dos seus conterrâneos, emerge o que é inerente a todos os
homens: o "direito de família", de ser concidadão, de pertencer a
alguma referência.
Diante da “fama” vem a vontade de
dizer que Ele é “dos nossos” e, por isso, nós também vamos tirar algum proveito
disso porque, se Ele é, de fato, o homem dos milagres, nós devemos ser os
primeiros a receber os benefícios!
Jesus, porém, os desmascara com a
Palavra de Deus, chamando-os para a verdade! Aliás, Ele arruína as nossas
ilusões egoístas, a nossa maneira de mascarar, como também as nossas mentiras!
Jesus, como verdadeiro Profeta
deixa bem claro que, se alguém quiser encontrar a Deus, deve primeiramente
tirar da cabeça a ideia de um Deus “faz tudo”, “concerta tudo”, pronto para
cada necessidade que me apareça nesta vida, inclusive em detrimento dos outros;
um Deus ao meu inteiro dispor.
Pelo contrário, somos chamados a
abrir-nos à novidade de um Deus que quer salvar não apenas Israel, os meus
amigos, a minha família, o meu grupo, a minha paróquia, mas quer salvar a
humanidade inteira!
Nós também, assim como os
nazarenos de então, queremos ter em Jesus, um taumaturgo à nossa disposição,
pronto para aliviar cada dor, seqüestrando assim a Graça e mantendo-a no
cativeiro das nossas necessidades e, às vezes, até de nossos caprichos.
Queremos que os projetos de Deus se adéqüem aos nossos porque, na verdade,
preferimos os milagres à Sua Palavra! O Evangelho, graças a Deus, não segue as
lógicas humanas. Aliás, difere muito delas. É por isso que, geralmente, para o
mundo o Evangelho não passa de uma utopia irrealizável, irreal, impraticável,
com reivindicações e pretensões ilógicas, e até mesmo que a cruz e o amor são excessivos!
Diante dessa ideia equivocada da
Palavra de Deus, fica evidente o conflito entre as leis “de Nazaré” e as leis
do Céu!
O Profeta descrito nas páginas
das leituras de hoje faz ecoar uma voz que abre brechas nas paredes de qualquer
sistema, repetindo incansavelmente "não se acomodem! O homem não vive só
de pão: a viúva, o órfão e o leproso são teus irmãos! A tua pátria é o céu!
Seja perfeito como o Pai”etc.
É triste ver como o Profeta Jesus
foi rejeitado em Nazaré. Mas não é menos triste perceber que também hoje é
rejeitado em muitas igrejas, sejam elas quais forem. Isso acontece quando
pretendemos que Deus faça as coisas que queremos e não somos capazes de
abrir-nos à Sua vontade, que tem um horizonte muito mais amplo e bonito que o
nosso.
O caminho do profeta já está
traçado: é a cruz! “Jesus, porém,
passando pelo meio deles, continuou o Seu caminho”! Eis um grande sinal antecipado do que
acontecerá na ressurreição, quando nem mesmo a morte O vencerá!
Ele continua a passar pelo meio
de nós, porque cada caminho e estrada do mundo é a Galileia, assim como continua
a repetir as Suas palavras para que esta geração não seja acusada de ter
lançado os seus profetas no precipício, e de ter desperdiçado os seus milagres.
Ali, justamente naquela terra
tinha acontecido o maior e mais esperado de todos os milagres: o nascimento do
Redentor! Mas não bastava! Que outro prodígio poderia ter sido maior? É claro
que quem vê apenas o exterior, não conseguiria compreender.
A decepção deles é grande. Com
isso, passam da inveja ao propósito de matá-Lo, procurando eliminar aquele que
nos chama ao amor, mas que acaba sendo um incômodo desconforto que agora querem
lançar precipício abaixo.
Jesus não resiste a quem não quer
acolhê-Lo e, “passando pelo meio deles,
continunou o seu caminho”. Eles queriam um sinal exterior, não a sua
própria conversão, por isso, indignados, “ficaram
furiosos... levantaram-se e O expulsaram da cidade”. Se tivessem boa
vontade, teriam preferido e pedido que Jesus ficasse em Nazaré, para o próprio
bem deles, como havia acontecido nas outras cidades e estradas da Palestina, e
em todos os lugares que precisavam d’Ele.
É bom lembrar que foi sempre a
disposição interior e a abertura de coração que abriram caminho aos maiores e mais
inesperados milagres.
Como os habitantes de Nazaré, nós
também corremos o risco de nos tornarmos uma geração que “desperdiça” os seus
profetas, bem como tantas profecias que o Espírito Santo suscitou tanto dentro como
da Igreja.
A Igreja também, de fato, às
vezes parece ter herdado o trágico destino de não compreender os seus profetas.
Sobretudo quando prefere os milagres à Palavra de Deus tirando, assim, o espaço
e a relevância que ela tem, e até mesmo julgando inconvenientes alguns dos seus
profetas. Qualquer igreja que aja assim, mais cedo ou mais tarde perceberá que
está “vazia” de Jesus, como a sinagoga de Nazaré ficou sem a Sua presença,
quando dela se retirou. Poderá até estar repleta de gente, mas sem a Sua
presença!
Como disse o Papa Bento XVI em
certa ocasião, “a Igreja não se faz a si
mesma e não vive de si mesma, mas da Palavra que vem da boca de Deus”. Por
isso, “quem se põe na escuta da Palavra
de Deus pode e deve depois falar e transmiti-la aos outros, principalmente
àqueles que nunca a ouviram, ou que a esqueceram enterrada debaixo dos espinhos
das preocupações e dos enganos deste mundo” (Mt 13,22).
Com razão, o papa se perguntava
se “nós cristãos não nos tornamos,
talvez, mudos; se não nos falta a coragem de falar e de testemunhar...”?.
A receita para o sucesso da
missão profética nos é dada por São Paulo, num texto que está entre os mais
belos e conhecidos do Novo Testamento. O hino ao amor.
Ele nos alerta para o perigo de
podermos fazer todas as coisas deste mundo, inclusive ter a plenitude da
ciência, possuir as riquezas, conquistar uma grande fé, e não ter o amor. Sem o
amor não seremos e não teremos nada!
Experimentemos fazer o exercício
com a carta do Apóstolo na segunda leitura (1Cor 12,31-13,13). Vamos substituir
a palavra “caridade” pelo nosso próprio nome, perguntando: Eu sou paciente? Eu
sou benigno (a)? Eu sou invejoso (a)? Eu
sou soberbo (a)? Eu sou inconveniente? Eu sou interesseiro (a)? ... e assim por
diante.
Com certeza descobriremos que
estamos longe de corresponder às exigências deste amor.
Mas nós também hoje, nas estradas
da nossa própria “Nazaré”, isto é, da trama da nossa vida, do nosso dia a dia,
podemos descobrir que também somos chamados a ser profetas, fazendo ecoar a voz
de Deus através da nossa própria voz.
O Espírito, então, descerá sobre
nós, em nosso dia a dia e então fará da nossa casa o Seu templo; estará em
todos os lugares onde a vida celebra a sua liturgia simples e perene, revelando
aos pequenos os segredos do Reino. (Frei
Alfredo Francisco de Souza, SIA – Missionário Inaciano –)